04/07/2025 às 15h54min - Atualizada em 04/07/2025 às 15h53min

A personalidade jurídica das organizações religiosas no Código Civil brasileiro: Análise da lei 10.825/03 e sua importância para a segurança jurídica e a liberdade de culto

Artigo escrito por Abner Ferreira e Sóstenes Marchezine

Coluna Jurídica Nos Estritos Termos da Lei

Coluna Jurídica Nos Estritos Termos da Lei

Por Abner Ferreira e Sóstenes Marchezine

A promulgação da lei 10.825, de 22 de dezembro de 2003, representou um marco na consolidação da autonomia organizacional das organizações religiosas no ordenamento jurídico brasileiro.

Ao conferir-lhes, de forma expressa, a natureza de pessoas jurídicas de direito privado e assegurar sua independência estatutária, o legislador corrigiu um vácuo normativo gerado pela entrada em vigor do novo CC (lei 10.406/02), que inadvertidamente excluíra tais entidades das categorias clássicas de personalidade jurídica previstas no art. 44.

A lei reparadora foi essencial para reafirmar a liberdade de crença, a laicidade cooperativa do Estado e a segurança jurídica dessas instituições, cuja relevância histórica, social e espiritual é inegável. Mais do que uma alteração legislativa técnica, tratou-se de um reconhecimento institucional de garantias fundamentais.

1. Contexto legislativo: do limbo jurídico à correção normativa

Até 2002, o CC de 1916 reconhecia expressamente as sociedades religiosas como pessoas jurídicas de direito privado. Com o advento do novo CC (lei 10.406/02), essa previsão desapareceu.

O art. 44 passou a prever apenas três categorias: associações, sociedades e fundações. As igrejas, no entanto, não se enquadravam com precisão em nenhuma dessas formas jurídicas.

  • As associações (art. 53) não se adequam à natureza espiritual e organizacional das igrejas, uma vez que exigem reciprocidade de direitos e obrigações entre associados, o que difere da lógica hierárquica e confessional da maioria das instituições religiosas;
  • As sociedades são destinadas à realização de atividade econômica com intuito de lucro (art. 981), o que evidentemente não se aplica às entidades religiosas;
  • As fundações (art. 62), embora possam ter finalidade religiosa, exigem dotação patrimonial vinculada e estrutura rígida, o que se mostra incompatível com a pluralidade e dinamismo das igrejas brasileiras, especialmente as de base comunitária.

A omissão do novo Código resultou naquilo que o próprio autor do PL 634/03, deputado Paulo Gouvêa (PL/RS), chamou de “limbo jurídico”. As organizações religiosas, até então amplamente reconhecidas e protegidas, ficaram sem base legal clara para sua constituição, manutenção e inscrição nos registros públicos, o que afetava diretamente sua funcionalidade jurídica, tributária, patrimonial e institucional.

2. A resposta legislativa: PL 634/03 e trâmite célere no Congresso

Diante da insegurança criada, o deputado Paulo Gouvêa propôs, em abril de 2003, o PL 634/03, com o objetivo de dar nova redação ao art. 44 do CC, incluindo expressamente as organizações religiosas como pessoas jurídicas de direito privado, além de garantir-lhes autonomia interna e imunidade a interferências do Estado.

Em sua justificativa, Gouvêa foi contundente:

“Limitar sua definição jurídica a uma única possibilidade é contrariar o bom senso, a lógica da sua essência, é agredir a história milenar desta instituição, cujo início se perde na bruma do tempo.”

A proposição foi apensada a outros onze projetos semelhantes, revelando o consenso suprapartidário em torno da necessidade de correção legislativa. Com relatoria do deputado João Alfredo (PT/CE), foi aprovado com celeridade na Comissão de Constituição e Justiça, sendo relatado em plenário por meio de uma Emenda Substitutiva Global. Em 5 de novembro de 2003, o projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados sob regime de urgência (REQ 1335/03).

No Senado Federal, a matéria tramitou como PLC 88/03. Relatado pelo senador Magno Malta, obteve parecer favorável na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sendo aprovado em plenário em 9 de dezembro de 2003, rejeitando-se a única emenda apresentada. Foi sancionado integralmente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 22 de dezembro de 2003, sendo publicado no DOU no dia seguinte.

3. O conteúdo da lei 10.825/03: Reconhecimento legal e garantias constitucionais

A lei 10.825/03 deu nova redação aos arts. 44 e 2.031 do CC, com os seguintes dispositivos centrais:

  • Inclusão do inciso IV no art. 44: reconhecendo expressamente as organizações religiosas como pessoas jurídicas de direito privado;
  • Inclusão do §1º no mesmo art.: garantindo sua liberdade organizacional e blindagem contra interferência estatal:

“São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.”

  • Inclusão do parágrafo único no art. 2.031: isentando essas entidades da obrigatoriedade de adaptar seus estatutos às exigências do novo CC no prazo de transição.

Essa redação conferiu uma estrutura legal própria às organizações religiosas, diferenciando-as das associações, e reconhecendo a especificidade de sua natureza institucional, que envolve fé, culto, autoridade espiritual e organização confessional.

4. Efeitos práticos e repercussões jurídicas

A entrada em vigor da lei 10.825/03 teve efeitos imediatos e estruturantes:

  • Reconhecimento jurídico autônomo das igrejas e comunidades religiosas perante os cartórios e registros civis de pessoas jurídicas;
  • Validação de seus estatutos e atos internos sem necessidade de adaptação aos moldes das associações civis;
  • Blindagem institucional contra interferência estatal indevida, nos moldes do art. 5º, VI e VIII da Constituição Federal;
  • Maior proteção patrimonial com base na separação entre o patrimônio da organização e o de seus líderes, conforme reforçado pelo art. 49-A do CC (lei 13.874/19);
  • Segurança jurídica para o exercício de atividades públicas, sociais, filantrópicas e culturais, inclusive para fins de imunidade e isenção tributária.

Além disso, a jurisprudência, tanto nos tribunais estaduais quanto superiores, passou a adotar o novo enquadramento legal com clareza. O STF reforçou que a liberdade religiosa compreende também a liberdade organizacional, desde que não haja violação à ordem pública.

5. Liberdade religiosa e laicidade positiva: a perspectiva constitucional

A lei 10.825/03 deve ser compreendida dentro de uma concepção moderna de laicidade cooperativa. O Estado brasileiro é laico, mas não antirreligioso. Ele deve garantir o livre exercício da fé, da expressão religiosa e da existência jurídica das entidades de culto, sem interferência em seus fundamentos teológicos, organização interna ou prática doutrinária.

Nesse sentido, a lei reafirma a laicidade como neutralidade ativa, que assegura espaço institucional às religiões, desde que respeitados os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da legalidade e da proteção de direitos fundamentais.

6. Conclusão: entre o direito civil e os direitos fundamentais

A lei 10.825/03 não apenas supriu uma omissão técnica do CC de 2002, mas reafirmou o compromisso do Estado brasileiro com a liberdade religiosa, a segurança jurídica e o pluralismo institucional.

Ao reconhecer expressamente as organizações religiosas como pessoas jurídicas de direito privado, com garantias próprias de funcionamento, organização e proteção patrimonial, o legislador assegurou a essas entidades condições mínimas de existência formal, de representatividade e de expressão no espaço público.

Trata-se de um exemplo claro de como o direito civil deve dialogar com os direitos fundamentais - promovendo um ordenamento jurídico coeso, coerente e comprometido com a liberdade e a dignidade humana.

_______

BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

BRASIL. Lei 10.825, de 22 de dezembro de 2003.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 634/2003 – Ficha de tramitação. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=109540

SENADO FEDERAL. PLC 88/2003 - Histórico legislativo. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/63963

STF. Recurso Extraordinário 566.471/RS, Rel. min. Cármen Lúcia.

Originariamente publicado no Migalhas.

 

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