A promulgação da lei 10.825, de 22 de dezembro de 2003, representou um marco na consolidação da autonomia organizacional das organizações religiosas no ordenamento jurídico brasileiro.
Ao conferir-lhes, de forma expressa, a natureza de pessoas jurídicas de direito privado e assegurar sua independência estatutária, o legislador corrigiu um vácuo normativo gerado pela entrada em vigor do novo CC (lei 10.406/02), que inadvertidamente excluíra tais entidades das categorias clássicas de personalidade jurídica previstas no art. 44.
A lei reparadora foi essencial para reafirmar a liberdade de crença, a laicidade cooperativa do Estado e a segurança jurídica dessas instituições, cuja relevância histórica, social e espiritual é inegável. Mais do que uma alteração legislativa técnica, tratou-se de um reconhecimento institucional de garantias fundamentais.
1. Contexto legislativo: do limbo jurídico à correção normativa
Até 2002, o CC de 1916 reconhecia expressamente as sociedades religiosas como pessoas jurídicas de direito privado. Com o advento do novo CC (lei 10.406/02), essa previsão desapareceu.
O art. 44 passou a prever apenas três categorias: associações, sociedades e fundações. As igrejas, no entanto, não se enquadravam com precisão em nenhuma dessas formas jurídicas.
A omissão do novo Código resultou naquilo que o próprio autor do PL 634/03, deputado Paulo Gouvêa (PL/RS), chamou de “limbo jurídico”. As organizações religiosas, até então amplamente reconhecidas e protegidas, ficaram sem base legal clara para sua constituição, manutenção e inscrição nos registros públicos, o que afetava diretamente sua funcionalidade jurídica, tributária, patrimonial e institucional.
2. A resposta legislativa: PL 634/03 e trâmite célere no Congresso
Diante da insegurança criada, o deputado Paulo Gouvêa propôs, em abril de 2003, o PL 634/03, com o objetivo de dar nova redação ao art. 44 do CC, incluindo expressamente as organizações religiosas como pessoas jurídicas de direito privado, além de garantir-lhes autonomia interna e imunidade a interferências do Estado.
Em sua justificativa, Gouvêa foi contundente:
“Limitar sua definição jurídica a uma única possibilidade é contrariar o bom senso, a lógica da sua essência, é agredir a história milenar desta instituição, cujo início se perde na bruma do tempo.”
A proposição foi apensada a outros onze projetos semelhantes, revelando o consenso suprapartidário em torno da necessidade de correção legislativa. Com relatoria do deputado João Alfredo (PT/CE), foi aprovado com celeridade na Comissão de Constituição e Justiça, sendo relatado em plenário por meio de uma Emenda Substitutiva Global. Em 5 de novembro de 2003, o projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados sob regime de urgência (REQ 1335/03).
No Senado Federal, a matéria tramitou como PLC 88/03. Relatado pelo senador Magno Malta, obteve parecer favorável na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sendo aprovado em plenário em 9 de dezembro de 2003, rejeitando-se a única emenda apresentada. Foi sancionado integralmente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 22 de dezembro de 2003, sendo publicado no DOU no dia seguinte.
3. O conteúdo da lei 10.825/03: Reconhecimento legal e garantias constitucionais
A lei 10.825/03 deu nova redação aos arts. 44 e 2.031 do CC, com os seguintes dispositivos centrais:
“São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.”
Essa redação conferiu uma estrutura legal própria às organizações religiosas, diferenciando-as das associações, e reconhecendo a especificidade de sua natureza institucional, que envolve fé, culto, autoridade espiritual e organização confessional.
4. Efeitos práticos e repercussões jurídicas
A entrada em vigor da lei 10.825/03 teve efeitos imediatos e estruturantes:
Além disso, a jurisprudência, tanto nos tribunais estaduais quanto superiores, passou a adotar o novo enquadramento legal com clareza. O STF reforçou que a liberdade religiosa compreende também a liberdade organizacional, desde que não haja violação à ordem pública.
5. Liberdade religiosa e laicidade positiva: a perspectiva constitucional
A lei 10.825/03 deve ser compreendida dentro de uma concepção moderna de laicidade cooperativa. O Estado brasileiro é laico, mas não antirreligioso. Ele deve garantir o livre exercício da fé, da expressão religiosa e da existência jurídica das entidades de culto, sem interferência em seus fundamentos teológicos, organização interna ou prática doutrinária.
Nesse sentido, a lei reafirma a laicidade como neutralidade ativa, que assegura espaço institucional às religiões, desde que respeitados os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da legalidade e da proteção de direitos fundamentais.
6. Conclusão: entre o direito civil e os direitos fundamentais
A lei 10.825/03 não apenas supriu uma omissão técnica do CC de 2002, mas reafirmou o compromisso do Estado brasileiro com a liberdade religiosa, a segurança jurídica e o pluralismo institucional.
Ao reconhecer expressamente as organizações religiosas como pessoas jurídicas de direito privado, com garantias próprias de funcionamento, organização e proteção patrimonial, o legislador assegurou a essas entidades condições mínimas de existência formal, de representatividade e de expressão no espaço público.
Trata-se de um exemplo claro de como o direito civil deve dialogar com os direitos fundamentais - promovendo um ordenamento jurídico coeso, coerente e comprometido com a liberdade e a dignidade humana.
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BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
BRASIL. Lei 10.825, de 22 de dezembro de 2003.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 634/2003 – Ficha de tramitação. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=109540
SENADO FEDERAL. PLC 88/2003 - Histórico legislativo. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/63963
STF. Recurso Extraordinário 566.471/RS, Rel. min. Cármen Lúcia.
Originariamente publicado no Migalhas.